Foto do acervo de Carmen Piovesan – 1980. À direita, a aluna Andressa Piovesan e na esquerda, o aluno Maurício Grad.
"Água tem memória"
por Michele Micheletto
O ano era 1980, a educação infantil chamava-se “jardim de infância” ou “pré-escola”, as famílias tinham outras rotinas e formatos. Mães mais jovens, tendo seus filhos entre os 18 e 22 anos, precisando de um espaço que acolhesse, brincasse e ensinasse no período em que elas estavam trabalhando ou mesmo para que tivessem um tempo para elas, durante as 4 horas em que as crianças estariam na escola.
Famílias em que apenas a mãe tinha uma participação ativa na escola e mulheres que estavam entrando no mercado de trabalho pela primeira vez eram a grande maioria nesse começo de década.
Em Curitiba, uma rua cercada de grandes árvores e com nome de poeta – a Rua Fernando Amaro, situada no bairro do Alto da Rua XV – passou a abrigar o Recanto Infantil Peixinho Dourado, nessa época, localizado onde hoje está o cond. residencial Pablo Picasso, na mesma quadra da escola.
Na foto, a fundadora da escola e ex-proprietária, Sra. Maria José Braga, as atuais diretoras Marcia e Marianna Canova, e Claudia Saren Canova.
Sobre as origens do Peixinho Dourado
Para descobrirmos mais sobre as origens do Peixinho Dourado, tivemos a oportunidade de entrevistar pessoas importantes para esse resgate da história. Nossas entrevistas aconteceram de forma virtual, e por vezes presencial, mas com os cuidados que nossos tempos exigem: máscara, álcool gel e distanciamento. Tivemos o prazer de conversar com ex-alunos e ex-alunas, com a primeira coordenadora, com a fundadora da escola e com a participação mais que especial dos alunos do Infantil 5, formandos do Peixinho no ano de 2020.
Nossa primeira entrevista foi com a Sra. Maria José Braga, hoje com 87 anos, que relembrou facilmente do seu entusiasmo na época em que montou a escola. Assim como as atuais coordenadoras Marcia Canova e sua filha, Marianna Canova, a Sra. Maria José fazia viagens pedagógicas para aprimorar os seus estudos em musicoterapia para crianças, e também tinha a preocupação da atualização com a educação dos alunos de necessidades especiais.
Chegada do Rio de Janeiro, a professora, doutora em música Maria José Braga, com 20 anos, tinha consigo o sonho de ter uma pré-escola, com ensino voltado às crianças e acreditando que a escola poderia ser diferente. Iniciou então seu trabalho, com poucas turmas, com no máximo 6 alunos. Concebida para crianças entre 3 e 6 anos, a escola funcionava apenas no período da tarde.
Foto Acervo Regina Wood, na foto, Marcia Wood – Curitiba, 1980.
Foto Acervo Regina Wood, na foto, Marcia Wood – Curitiba, 1980.
O primeiro logotipo da Escola
O primeiro logotipo da escola foi desenvolvido pelo amigo do filho da Sra. Maria José, que “desenhava bem”. Anos mais tarde, a marca foi redesenhada, desta vez, buscando “como uma criança faz um peixinho”.
Pouco tempo depois, a escola mudou para a casa ao lado, onde hoje fica o estacionamento. Nessa casa, com mais área física, a escola começa a crescer e se estruturar, e também mudou de mãos.
Com o projeto pedagógico tradicional, mas quase chegando a 100 alunos – e agora operando também pela manhã – a escola contava com a coordenação pedagógica da psicopedagoga Simone Carlberg, também em início de carreira, com seus 20 anos, e que hoje é uma referência em psicopedagogia.
Nessa época, Simone estava perto de se formar em pedagogia, e tinha um visão que envolvia a arte em diversos momentos no aprendizado. Como coordenadora, Simone inseriu passeios, idas a museus, pic-nics com os pais e diversas atividades, bem antes da chegada do “socio-construtivismo”. Simone contou em entrevista virtual que, na rua da escola passava uma linha de ônibus, “Rua XV/Barigui” – e que costumavam embarcar com as turmas, desembarcando no Guairinha para assistir uma peça de teatro. Todos que por ali passavam ficavam admirados e tinham muito prazer em ajudar.
Grandes festas e comemorações também marcaram essa época. A Sociedade Thalia abrigou durante alguns anos a festa de encerramento do ano letivo. Carnavais, festas juninas, comemorações de dia das mães entre outras celebrações foram citadas por diversas famílias que contribuíram com fotos e depoimentos para esse Museu Virtual do Peixinho.
Em 1987, a psicopedagoga Marcia Canova, com 23 anos, se muda para Curitiba, vinda de Santo André-SP, para iniciar um grande sonho/projeto de vida. Ter uma escola e ser dona do seu próprio negócio. Marianna nesse época tem 3 anos, e começa a sua própria história no Peixinho, mas como estudante.
Marcia Canova, sócia e diretora da Escola Peixinho Dourado – 2020.
Acervo Marcia Canova, na foto Marianna Canova, Curitiba – 1987.
No ano de 1990, Claudia Saren Canova também vem para Curitiba trabalhar com Marcia. Ela que já tinha a formação em magistério e estava cursando Administração, vem somar nas questões administrativas da escola. Como costumam ser os começos de qualquer negócio próprio, os anos que se seguiram foram de muito trabalho e garra. Contaram com a assessoria do Sebrae para aprender e ter ferramentas de gestão e organização financeira, que foram fundamentais para a estruturação da escola.
No mesmo ano, um inesperado convite para desocupar a sede (do atual estacionamento) trouxe uma série de incertezas e preocupações, já que mudar a sede de local incluía mudar o perfil do público. Mas com uma grande sorte do destino, um imóvel na mesma quadra estava disponível e Marcia recorre ao crédito do BNDES para fundar a primeira sede própria do peixinho Dourado. Esta já foi pensada para ser uma escola, com o projeto arquitetônico assinado pela arquiteta Ester Kloss.
Nova sede do Peixinho Dourado, espaço pensado para ser uma pré-escola. Acervo Peixinho Dourado – Curitiba, 1997.
Cada memória é história que, por algum motivo, a gente não deixa ir embora
Em nossa série de entrevistas pudemos ouvir palavras como afeto, carinho, respeito, responsabilidade, admiração, liberdade para brincar, inúmeras vezes. Palavras fortes, que trazem muito sentido e significado para as famílias que passaram por esta instituição.
Tivemos o prazer de resgatar um dos alunos das primeiras turmas do Peixinho. Mauricio Grad, 43 anos, que estava acompanhado de sua mãe, Ana Maria Grad e chegaram munidos de incríveis fotos dessa época.
Detalhes como a apresentação de final de ano foram recordadas por Ana Maria, que lembrou até mesmo das músicas, do disco “Arca de Noé” de Vinícius de Moraes, lançado naquele ano e trabalhado com a turma de Maurício. O nome da professora, “Karen”, as brincadeiras e os primeiros amigos foram lembrados nessa visita.
Ana Maria, mãe de Maurício e Fábio Grad, contou que era o marido quem levava as crianças para escola, pois ela, que era professora, trabalhava cedo. Uma rotina diferente na época, conta Ana Maria, que ficou sabendo do Peixinho por meio de amigas professoras que já tinham filhos matriculados.
Na foto, Fabio Grad, Andreza Piovezan, Maurício Grad, Marcia Wood e amiga. Acervo Ana Maria Grad. Foto do passeio com a escola – Curitiba 1980
Maurício Grad em visita ao Peixinho Dourado. Curitiba, 2020.
As alunas da década de 90, Camila Smuda e Maria Luisa Túlio também compartilharam momentos marcantes da infância em visita ao Peixinho. Amigas desde o “maternal”, elas nos contaram dos momentos de cumplicidade e aprendizado que tiveram uma com a outra.
“Hoje vejo que aprendi a me respeitar e amar já naquela época, porque a Camila era muito detalhista, enquanto eu era mais criativa, e estava tudo bem, uma completava a outra”, relembra Maria Luiza.
Na foto, da esquerda para direita, Madri, Theo, Maya e Willian. Mariana Canova, Ana Luísa Túlio, Camila Smuda e prof. Carla. Curitiba, 2020.
Alunas da década de 90, as amigas Ana Luisa Túlio e Camila Smuda. Curitiba, 2020.
A aluna Isabela Cortez também nos visitou, ela que foi da mesma turma de Maria Luisa e Camila, tiveram como professora Ana Claudia, hoje coordenadora do Peixinho.
Em visita a escola, Isabela conta que se sentia “livre” e pertencente na escola, local em que descobriu a comunicação e oratória fariam partes da sua profissão hoje. Ela lembrou dos cheiros e particularidades como um pote de arnica – “santo remédio” para qualquer machucado – que ficava sobre a proteção de Marcia Dias. O aroma da comida da tia Dalva também fez-se lembrar nessa visita, assim como vários dos momentos vividos no pátio e parquinho da escola, hoje tão diferentes da época em que estudou no Peixinho.
A percepção da escala da escola chamou a atenção das três alunas, que disseram: “Nossa, era tudo tão grande”! O parquinho que contava com um castelo, na época.
Dos anos 90 a 2000, década importante para o fortalecimento da escola – sempre em constante transformação – está sob a gestão de Marcia Canova e Cláudia Saren Canova, atentas aos desenvolvimentos na educação. Agora com o funcionamento em horário integral e com berçário a pleno vapor, devido a grande demanda de pedido das mães que, nesta década, tem o seu lugar de trabalho consolidado.
São mães médicas, enfermeiras, dentistas, advogadas entre tantas outras profissões que têm na pré-escola uma das suas principais aliadas da rotina. A participação dos homens também é mais ativa na escola e as demandas com a alimentação saudável tornam-se fundamentais. Fazendo um recorte rápido, na década de 80 era comum oferecer refrigerantes e doces às crianças, bem como salgadinhos e outras “besteiras” que tinham seu desejo e consumo fortalecidos pelas notáveis propagandas na tv.
Aluna da década de 90, Isabela Cortez.
A preocupação com alimentação saudável e caseira é notória no Peixinho, que incluiu uma nutricionista e aulas sobre os alimentos já no início dos anos 90, sendo precursora no tema.
O fortalecimento do lado social e investigativo das crianças também é cultivado, tendo visitas a inúmeros espaços, como ao corpo de bombeiros, ao aeroclube, a sociedade hípica, a uma fábrica de papel, a prefeitura e a uma emissora de rádio. Estes são alguns dos passeios que encontramos registrados no rico acervo físico de fotos do Peixinho Dourado.
Vale lembrar que nos anos 80 e 90, no Brasil, não era tão comum ter uma câmera fotográfica em casa, logo os registros do Peixinho vieram de muitos olhares profissionais ou de pais fotógrafos amadores e apaixonados por registros, assim como os pais de hoje em dia.
Aqui fica o convite, a você que está aqui em nosso museu, visitar as nossas “salas”, a galeria de imagens em que dividimos esse rico acervo por décadas.
A partir dos anos 2000, a popularização de câmeras digitais e insumos fotográficos é crescente, e é visível notar a ampliação exponencial dos registros que fazem parte dessa história.
Anos 2000 à 2010
Essa década é especialmente importante para o aperfeiçoamento da direção do Peixinho, em que mãe e filha, Marcia e Marianna Canova, desenvolvem uma série de cursos e vivências dentro de aspectos importantes da psicopedagogia.
Marianna, que cresceu convivendo com a dinâmica da escola, relembra que ficou sozinha com uma turma pela primeira vez aos 12 anos. Quando estava na 8.a série, decidiu que sim, queria trabalhar como educadora. Cursou Magistério no ensino médio, no colégio Sagrado Coração. Na época do vestibular já tinha jornada tripla: ia para a escola pela manhã, ao Peixinho à tarde, fazia cursinho à noite e passou em todos os vestibulares que prestou.
No primeiro ano de pedagogia na UFPR foi convidada para trabalhar em outra escola, no bairro do Campo Comprido: a escola “Como Viver”, que é como uma chácara, e tinha uma visão bastante alternativa e solta, o que foi importante na sua formação. Pouco depois, no ano de 2004, decide fazer “Au Pair” nos Estados Unidos.
Em entrevista com Marcia, ela relembra da constante inquietação que Marianna tem no processo de educação. Já Marianna, afirmou que até então, não tinha argumentos suficientes para defender sua posição de sair do ensino tradicional.
Nesta fase em que Marianna estudou fora do Brasil, experimentou muitas coisas além de estar longe da família e namorado pela primeira vez: estudou outra língua, vivenciou outra cultura e estagiou voluntariamente numa escola de educação infantil em Connecticut, no contra-turno, quando as crianças da família de quem cuidava estavam na escola .
Anos mais tarde, ficou sabendo que a metodologia da escola do seu intercâmbio era “Reggio Emilia”, no entanto, enquanto estagiava ninguém conseguia lhe explicar qual era a linha pedagógica e apenas diziam que tinham “Piaget” como base.
Durante o período que esteve fora, Marianna retratava para a sua mãe como era diferente o ensino. “Aqui não tem aula, as crianças ficam fazendo as coisas sem tanta intervenção.” Essa experiência também foi significativa para a vivência pedagógica de Marianna, que retorna ao Brasil no ano seguinte.
Anos 2010 à 2020
“Sair da ilha, para ver a ilha”
por José Saramago
Nos anos seguintes, Marianna assume a coordenação ao lado de sua mãe, Márcia Canova, e uma grande pesquisa embasada nos modelos vivenciados é realizada, com o mestrado na UFPR para atestar.
O professor Guga Cidral ajuda bastante a consolidar esta percepção sobre um novo olhar para a educação infantil, com ênfase no brincar. No ano de 2016, mãe e filha partem em viagem à Argentina, para conhecer a especial escola Fabulinus.
Marianna, que já é mãe e deixa seu bebê aos cuidados do pai para realizar essa viagem, experimenta a famosa “culpa materna”, mas a vontade por mudança e o descontentamento com os atuais modelos pedagógicos até então são combustíveis para essa tão importante viagem.
Alejandra Dubovik e Alejandra Cipitelli, responsáveis pela escola Fabulinus (Tigre, Argentina), recebem mãe e filha na escola que tem a abordagem Reggio Emilia. E um grande momento de “eureka” se faz para Marcia e Marianna, que nesse momento entenderam com clareza e sentido tudo o que buscavam até então. Essa visita é relatada com grande emoção pelas duas coordenadoras do peixinho, regadas a lágrimas, no momento da entrevista.
Outubro de 2016, data dessa importante vivência é de fato o marco para a grande mudança no jeito de fazer e ensinar do Peixinho Dourado. Agora tudo parece se encaixar nos conceitos e busca de processos, com convicção no propósito de ensinar fora do tradicional.
Autonomia, o pensar da criança, aprender brincando, micro ambientes estruturados e a materialidade ( diversidade de elementos, naturais em sua maioria) fazem parte desse novo. E, como tudo que é novo causa estranhamento, para as professoras não foi diferente.
Liberar espaços nas salas de aula e retirar a mesa das professoras, mesas e cadeiras dos alunos, é apenas um dos fatos marcantes para essas gestoras. Um momento confuso para toda equipe, mas que, após uma viagem de capacitação para as professoras na escola Villare (São Paulo), se fizeram entender. Agora sim estava claro o que era esse novo jeito de ensinar.
Marcia e Marianna Canova em visita ao Chile. Santiago, 2019.
A atualização permanente no ensino foi uma característica lembrada por quase todas as mulheres entrevistadas que passaram pela gestão Peixinho Dourado. Desde a fundadora Maria José, a coordenadora Simone Carlberg, até mesmo para Adriana Smolka, que foi auxiliar de classe na década de 80. É, ” à água tem memória”.
Essa preocupação latente com o jeito de ensinar fez com que Márcia e Marianna Canova realizassem uma série de viagens pedagógicas. Visitaram escolas de educação infantil em Porto Alegre, São Paulo, retornaram à Argentina, foram ao Peru, e a tão sonhada Reggio Emilia na Itália.
Essas atualizações trouxeram um novo jeito de olhar sobre a educação. Co-criar com as professoras, escutar as crianças e observar suas criações, trabalhar contextos de investigação a partir da curiosidade das crianças fizeram e fazem todo o sentido no momento de aprendizagem e descoberta das crianças.
Marcia e Marianna Canova em visita a escola Atelie Carambola.. São Paulo, 2019.
O Peixinho visto como referência
O Peixinho Dourado que já é visto como escola referência, agora tem um novo desafio/ sonho, o de ter um Centro de Formação, externo, que visa aprimorar e discutir o jeito de ensinar, através de cursos e conversas. Uma nova lista de escolas pelo mundo já fazem parte das metas de visitas de Marcia e Marianna, pós pandemia.
Quando perguntadas sobre o futuro da educação nos próximos 5 anos, palavras que remetem aos conceitos do Peixinho vem à tona, como “formar cidadãos conscientes e capacitados para pensar”, diz Marcia Canova. Quanto compromisso, carinho, responsabilidade numa frase! Melhorar as práticas e o respeito à criança, a participação e engajamento dos pais para a formação de seus filhos, são metas alcançáveis para protagonizar a formação desses pequenos cidadãos e cidadãs, atuantes.